“Eu quero fazer uma geografia do cotidiano”
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Conversa realizada entre a assistente de pesquisadora do projeto e o ativista Mailson Acacio do Santos Melo aluno do curso de graduação em Geografia, pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) sobre sua participação no workshop Pedagogias Radicais do Sul. Conversa realizada através da plataforma Google Meet, no dia 26 de Junho de 2023.
Quais experiencias do projeto Pedagogias Radicais mais tocaram ou impactaram você?
Várias experiências me tocaram. Mas, o primeiro dia do evento, no Campo de São Cristovão, aqui no campus da UFS, me tocou muito, pois a professora Katucha falou sobre as mulheres quilombolas daqui. Isso me aproximou muito, porque ela conhecia a história das mulheres que fazem parte do movimento quilombola aqui de Sergipe. Então, quando ela começou a falar sobre Dona Josefa, uma agricultora familiar aqui do município de Simão Dias, das mulheres que rodeiam aqui, me emocionou muito. Era uma segunda-feira e, pra quem é de santo, é importante iniciar numa segunda-feira, pois foi uma abertura de caminhos que foi feita a partir desses encontros. Foi muito fantástico, num primeiro momento. Outro momento que me tocou muito foi na comunidade de Santa Cruz, no município Brejo Grande, onde juntamente com as professoras Gabriela, Edineia, Raimunda, Tamires, Shimoneha e Wedna, éramos umas oito pessoas. Fomos ao litoral de Sergipe. Ficamos dois dias lá. Visitamos um terreiro de Umbanda e a casa de um candomblecista da comunidade. Aí, a gente percebeu como a sensibilidade daquele povo nos tocava. Nós ficamos uma manhã toda numa comunidade quilombola de Santa Cruz e tivemos uma experiência fantástica com a ancestralidade daquele povo. Então, além de tudo que foi falado, começando com a existência das mulheres e da espiritualidade das comunidades quilombolas, foi muito importante. Foi importante parar tudo, todos no meio da correria, nosso tempo parou. Desacelerou. Foi importante para elas conhecerem a diversidade do Sergipe: as comunidades quilombolas não são homogêneas, algumas são próximas do litoral, outras dos rios, nas florestas, ou em nenhum desses lugares. Então, foi importante ir a Santa Cruz para elas perceberem isso e para nos reconectarmos com o nosso povo.

Como as Pedagogias Radicais, que trabalham com conceitos como ancestralidade, podem contribuir para melhorar a educação?
Eu acho que a proposta das Pedagogias Radicais tem a ver com esse processo de nos reconhecermos. Na América Latina, e o Brasil, principalmente, é um país que não se reconhece como latino. E é importante falarmos sobre isso. Eu tenho ancestrais indígenas e quilombolas, então, eu também estou nesse caminho de me reconhecer. Aqui em Sergipe, temos trabalhado muito com essa proposta de autorreconhecimento, mas minha comunidade também tem que me reconhecer como tal. Então, levando para educação, eu sou da Geografia, e aqui no programa de pós-graduação a gente não trabalha com educação indígena ou quilombola. Então, eu enfrento uma problemática: como eu vou falar de mim e dos meus na geografia se não há espaço? E eu não quero trabalhar nada que não seja pelo meu povo. O que não dá mais pra fazer é a gente não falar mais sobre a gente. Mas eu também não quero brigar para falar sobre os indígenas. Eu falo pelo meu povo, que está entrelaçado com o capitalismo, com a questão de raça, que vem sendo inviabilizado pelas políticas públicas. Já chega de não pesquisar temas que não sejam sobre nosso povo. Como nordestinos, chegou o momento de falarmos de nossa região apenas como uma região submetida. Sofremos, fomos expropriados, mas temos muitos potenciais criativos, na educação. Todos os nordestinos foram pioneiros na educação no Brasil. Então, eu quero trabalhar uma geografia que seja vivida pelos meus alunos. Eu quero falar da realidade do meu povo, se isso é ser radical, eu não sei! (risos) A luta contra o patriarcado, injustiças, racismo, capitalismo estão entrelaçados. O Brasil é um país que podemos falar sobre tudo. A gente não precisa hierarquizar as lutas.
Falando um pouco da sua experiencia: você vindo de uma comunidade quilombola. Você se vê voltando para sua comunidade?
Eu estudei a minha vida toda na escola quilombola. Era uma escola rural, fundada na década de 1940. Em 2003, conseguimos implementar o ensino médio e fundamental nessa escola que passou a se chamar Colégio Estadual Quilombola 27 de Maio. Minha vida toda eu estudei lá: desde o “prézinho” até o terceiro ano. Têm professores que ainda estão lá até hoje. Eu tive uma experiência de voltar a essa escola num projeto também feito pela professora Edineia chamado Entrelaço de Resistência, feito em três colégios estaduais, alguns municipais e envolvendo profissionais de educação, geografia, da rede estadual e municipal. Eu tive a oportunidade de acompanhar as aulas de um professor de Geografia nas turmas do sexto e sétimos anos. E foi sensacional. A gente briga muito por uma formação continuada, principalmente na modalidade educação quilombola. O que é uma escola quilombola, uma escola na comunidade quilombola, uma escola que está na comunidade quilombola, mas não é quilombola. Essa experiência me proporcionou retornar à minha escola, e voltar ao sexto ano - tinha uns 15 alunos na turma, desses, 13 eram meus primos. Foi uma experiência fantástica de voltar a esse lugar. Voltar à escola, com muito afeto, na aula de geografia. Mesmo que a gente não consiga vaga pra professor nas escolas quilombolas, mas a gente já avançou muito. Só o fato de eu estar na universidade, e outros colegas, é um sinal de que valeu a luta dos últimos trintas anos. Hoje, eu estou aqui, mas não estou desconectado da minha realidade. É importante que o aluno quilombola que vá pra universidade não se sinta desconectado. Pois se o aluno não conhecer sobre sua história, ele não tem vivência, e vai ser só mais um. Em Sergipe, a gente tem uma expressão “esvaziado de mente”, uma pessoa sem juízo, que vá sem conhecimento sobre seu povo, ele não vai se posicionar quando falarem sobre seu povo, sua comunidade. Se eu não souber quem é meu povo, vão falar de mim e eu não vou saber o que fazer ou lutar para que outros que venham depois de mim ocupem os lugares que eu não ocupei. É importante que os alunos ocupem a UNE, mestrado, doutorado nas universidades e que lutem pelo nosso povo. O que importa é a conexão com o nosso povo, pois, do contrário, vai conectar com outras situações. Não é só ocupar, mas ocupar para lutar e resistir. Buscando temas, pesquisando, sendo ativo. Se não for ativo não adianta.
Sobre a educação e escola quilombola
Temos avançado muito, e isso é pedagógico. Mas, se a escola conseguir implementar um currículo que dialogue com sua comunidade, a gente consegue melhorar a educação quilombola. Quando a comunidade se descobrir quilombola e os professores se descobrirem quilombolas, a situação vai mudar. E para isso, é importante ouvir, e não apenas a literatura. Se a escola, um dia, conseguir ouvir todas as pessoas que falam sobre a comunidade, que são quilombolas e implementar isso no seu currículo, os alunos vão conseguir aprender de uma forma mais leve. A gente precisa ensinar pra eles que eles podem aprender sobre relevo, movimento pendular, população, etc. olhando ao seu redor. Se o professor conseguir fazer com que a comunidade esteja em sua aula, as coisas acontecem. Por exemplo, se o ensino é relacionado com a comunidade, as coisas acontecem. Isso deveria ter sido feito com a lei 10.639, há 20 anos, mas não foi feito, para trabalhar sobre as produções afro-brasileiras. Depois em 2008, com a lei 10.645. Mas, nada acontece. Hoje, na universidade, me perguntam com que categoria eu vou trabalhar se eu for trabalhar com comunidades quilombolas, eu respondo: depende do que eu quiser fazer, eu posso trabalhar com o que eu quiser. Depende do meu olhar. Então, se a comunidade enxerga a importância dela no currículo, as coisas acontecem.
Como você enxerga sua participação no quilombo/ na comunidade?
É complicado. Eu não me dou o direito de descansar. Meus tios participaram da fundação da CONAC. O meu tio, com a minha idade, já participava de muita coisa, nacionalmente. A gente sente uma bagagem, uma cobrança, que é importante. Mesmo que seja pesado em alguns momentos, se eles não tivessem lutado, talvez eu não estaria onde eu estou. Se eu não lutar, pode ser que outros não possam ocupar o lugar que eu ocupo ou possa ocupar um dia. Não é que eu não possa descansar, mas a gente não pode voltar atrás. Já chega de voltar atrás nas situações. Não posso, a partir de hoje, não falar mais sobre quilombola na graduação, e falar sobre um tema que dá muito dinheiro, conseguir um bom emprego. Mas, nunca na minha cabeça eu me vejo fazendo isso, pois eu vou me desconectar da minha comunidade e tudo que tenho feito até agora. Então, essa cobrança é boa pois ela me diz que eu posso ir até aqui. Eu posso ir por aqui ou por aqui, mas se você for num caminho contrário à sua luta, você tem que assumir as suas responsabilidades. Por exemplo, a minha mãe teve a oportunidade de ir para Nova York à convite de uma antropóloga. Ela teve a oportunidade de sair da comunidade. Talvez, hoje ela estivesse dando aula lá na universidade e se desconectado de sua comunidade. Mas ela decidiu voltar e não se arrepende. Eu penso sobre isso, e acho que ela ganhou muito. Teve a gente, família. A luta tem continuado. Ela ainda pode ir pra Nova York, então, eu uso esse exemplo pra dizer que eu posso ir pra Nova York, mas eu não posso ir para Nova York sem falar do meu povo. Eu posso um dia ir pra o Reino Unido, mas não sem falar do meu povo. Atualmente, eu tenho enfrentado um problema: no departamento de geografia daqui ninguém fala sobre quilombola e indígena. Eu vou ter que mudar pra outro lugar. Não adianta não falar sobre a gente. Se não me deixarem falar aqui, vou mudar pra outro departamento.
Ainda sobre os aprendizados com o workshop
A gente aprende muito com que está ao nosso redor. Eu aprendi muito com cada uma delas. Observando. Eu quero saber o que o povo quer que eu fale. Eu me sinto responsável em fazer alguma coisa pelo meu povo. Esse ensino, então, tem que dialogar com meu povo. Se não dialoga, então eu tô fazendo algo errado. Eu tenho aprendido muito com as mulheres ao meu entorno, as mulheres quilombolas, o quanto elas foram silenciadas. Eu quero ouvir o que elas têm pra falar. E isso me tranquiliza muito. Eu quero escrever sobre o que o meu povo quer que eu escreva.
Últimos pensamentos
Agradeça a Katucha e Gabriela. A experiência foi muito importante pra gente, eu estava passando por um período de questionamentos e decisões. Ir visitar às comunidades foi fantástico. Foram experiências revolucionárias e radicais, pois eu consegui começar a pensar além da caixinha. A Gabriela subiu numa gameleira, uma árvore muito presente nas comunidades quilombolas. Ser radical é ir nesses lugares, em Sergipe! Rs. Mesmo que o tempo tenha sido curto, mas durante aqueles dias eu percebi o quanto é importante continuar a luta. A Katucha e a Gabriela saíram do Brasil para estudar sobre o Brasil. Eu tenho pensado sobre isso: eu não posso desistir dessa luta, pois se eu desistir, alguém não luta. Então, o que tem me revigorado é saber que uma semana revolucionou muito. Eu quero isso: pesquisar sobre isso e que outras pessoas pesquisem sobre isso – quilombola, indígena. Se eu conseguir dar aula na graduação, eu quero falar sobre isso. Vou repetir, já chega de pesquisar temas que não falem sobre nós. Não quero falar, escrever ou pesquisar temas que não façam parte do meu dia a dia. Eu quero uma educação que fale do meu povo, para que falando, eles possam um dia falar sobre si. E quero continuar participando de eventos como esse.

Esse evento foi revolucionário por saber que pessoas que estão no Reino Unido, tão distante da minha realidade sabem dela. Nem todo mundo entrou num avião e visitou o Reino Unido. Esse evento me proporcionou ir à lugares que nunca pensei ir. Já rompeu com isso aí. Ter acessado lugares. Por exemplo, como ribeirinho, saber de pessoas que estão na Escócia que falem sobre isso num continente tão complicado, mas que estão lutando contra o sistema imperialista, racista. Saber que a Katucha e a Gabriela, mesmo distantes geograficamente, estão conectadas, ancestralmente, faz com que eu me reconecte ainda mais comigo e com meu povo. De lá pra cá, comecei a desacelerar e repensar muitas coisas.
Chegou o momento de a gente ocupar esses lugares. Foi também revolucionário por saber que eu não estou sozinho. Saber que minha cidade é enxergada internacionalmente. Seja materialmente, espiritualmente, eu não estou sozinho e a gente consegue avançar muito. Isso é muito radical. Tem gente que pesquisa comigo. Mesmo que a UFS não pesquise, outros países vão enxergar.